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Escola de Teatro Célia Helena Inglês Notícias No teatro de Joël Pommerat, perguntas são mais interessantes que respostas

No teatro de Joël Pommerat, perguntas são mais interessantes que respostas

Por meio de sua assessoria, autor francês conversou com o Blog Célia Helena

Na efervescência da dramaturgia contemporânea francesa, Joël Pommerat é um nome consolidado, porém ainda pouco conhecido no Brasil. Sua obra quase apareceu para o público em 2009, no projeto “Da Possibilidade da Alegria no Mundo”, quando o diretor Newton Moreno planejava mesclar um de seus textos com obras de outros autores estrangeiros, mas acabou excluindo o francês: sua peça era extensa demais para entrar no espetáculo.

Pommerat acabou sendo de fato apresentado à plateia brasileira em 2012 por Renata Sorrah, que conheceu a obra do autor pela indicação de Ariane Mnouchkine — diretora da reconhecida companhia francesa Théâtre du Soleil. Junto à Companhia Brasileira de Teatro, Sorrah estreou “Esta Criança” no Rio de Janeiro e viajou com o espetáculo por diversas cidades do Brasil.

O autor Joël Pommerat, um dos expoentes da dramaturgia contemporânea francesa – DIVULGAÇÃO

Em 2016, as palavras de Pommerat voltaram a ganhar vida por aqui, dessa vez com a apresentação de “Ça Ira”, um dos destaques da terceira edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Mais tarde no mesmo ano, o diretor João Fonseca manteve o autor em evidência, encenando “A Reunificação das Duas Coreias”.

Este também foi o texto escolhido por Lígia Cortez, Janaina Suaudeau e pela turma que esteve sob suas batutas para a formatura do grupo no Célia Helena. A peça teve quatro apresentações de 10 a 13 de dezembro, no Teatro Sérgio Cardoso. No palco, os atores se revezavam para viver histórias curtas — quase sempre tragicômicas — mescladas com números musicais.

O Blog Célia Helena conversou com Pommerat por meio da dramaturga de sua companhia, Marion Boudier, que também é autora de “Com Joël Pommerat: Um mundo complexo” (“Avec Joël Pommerat: Un monde complexe”, em tradução livre). Pelas falas de Boudier, mergulhamos mais profundamente no universo ácido e familiar de Pommerat.


Blog Célia Helena: Pommerat é autor de “A Reunificação das Duas Coreias”, mas o título da peça não é referente à política: vem do discurso de um personagem que fala do encontro de pessoas que se amam. Ainda assim, é possível enxergar metáforas políticas no enredo?

Marion Boudier: O termo “político” é muito complexo e precisa ser redefinido cada vez que o usamos. O teatro de Joël Pommerat nunca é político no sentido de “militante”. É um teatro que questiona, mas não oferece soluções. Se definirmos o termo “político” como uma reflexão coletiva sobre a nossa presença no mundo, então talvez sim, o teatro de Pommerat é político.

Escrever um espetáculo sobre as relações afetivas e amorosas, sobre as ligações humanas, sobre os primeiros microcosmos (que são o casal e a família) — tudo isso pode ter um lado político no sentido amplo da reflexão sobre a vida em conjunto, sobre o que conecta ou aliena as pessoas em suas relações fundamentais. Mas Pommerat se recusa a influenciar a plateia, passar uma mensagem explícita ou fazer a pura demonstração de um tema.

BCH: Em textos como “A Reunificação…” e “Esta Criança”, é visível que a fragmentação é uma técnica muito presente no trabalho de Pommerat. Quais são as vantagens de dividir uma peça em diversas histórias curtas?

MB: Joël Pommerat descreveu estas peças como sequências de “instantes sem unidade nem coerência narrativa, uma sucessão de pequenos fragmentos fictícios, como notícias sobre um tema mais ou menos comum”. Ele se refere especialmente à obra do [dramaturgo russo Anton] Tchekhov, um autor que ele aprecia enormemente.

Depois de ter produzido uma grande história em “Meu Quarto Frio” (“Ma Chambre Froide”, em tradução livre), o retorno ao fragmento o permite aprofundar sua pesquisa sobre um teatro de situação, concreto e realista. O fragmento também possibilita uma abertura de sentido, dos efeitos do eco e das variações que surgem da vontade profunda de “mostrar sem demonstrar”, como Pommerat escreve no texto “Teatro em Presença” (“Théâtre en Présence”, em tradução livre).

Alunos do Célia Helena em “A Reunificação das Duas Coreias”; Com o buquê na mão, noiva vê seu casamento desmoronando ao descobrir envolvimento do futuro marido com suas irmãs – Foto: JOÃO CALDAS FILHO

BCH: “A Reunificação…” mostra um vasto conjunto de cenas que descrevem relações atuais entre famílias, amigos e casais. Por que é importante discutir essas relações humanas hoje?

MB: Pommerat comenta que essa é umas das peças mais pessoais e íntimas que ele escreveu. De certa forma, o texto se impôs em um momento de sua carreira, a partir de um trabalho coletivo. Não foi em reação a um comportamento da sociedade atual.

Para Pommerat, o teatro é sempre “um lugar de observação e de experiência do humano”. Todos os espetáculos dele são atravessados por questões de individualismo, liberdade e determinismo: podemos existir sem os outros? O que é que nos liga aos outros e ao sentimento da nossa existência? Quais ideias, valores ou fantasmas dão sentido às relações humanas?

A família e o casal são a base da nossa vida social, são seus denominadores mais fundamentais. Observar as relações e as ligações que se tecem entre as pessoas é essencial para tentar compreender a vida coletiva em grande escala. Além disso, o casal e a família são microcosmos facilmente identificáveis, com os quais o espectador se identifica e sobre os quais se questiona naturalmente.

Em jogo de cena surpreendente de “A Reunificação das Duas Coreias”, alunas do Célia vivem duas amigas que se dão muito bem, mas a sinceridade de uma acaba ferindo os sentimentos da outra – Foto: JOÃO CALDAS FILHO

BCH: As peças de Pommerat tem cenas com informações dúbias. Às vezes, não se conhece exatamente o contexto exato de cada situação ou não se pode definir as conclusões de cada cena. Essa característica é uma escolha consciente? O que ela pode causar no público?

MB: Sim, abrir os diversos sentidos da cena é uma escolha. Não mostrar tudo, não explicar tudo: isso coloca o espectador em um estado intenso de atenção para surpreendê-lo, para convidá-lo a imaginar ou a questionar o que ele vê. Como o nome da companhia sugere*, Joël Pommerat adora misturar as pistas de interpretação mais esperadas. Ele busca criar desordem e complexidade.

*Pommerat trabalha na Companhia Louis Brouillard. O nome do grupo junta referências (é inspirado no nome do pai de Pommerat, nos irmãos Lumière e no Théâtre du Soleil) e “Brouillard” deriva do verbo francês “brouiller”, que significa “misturar”, “desfocar”.

BCH: Uma das cenas de “A Reunificação…” fala abertamente sobre a verdade. Há, ainda, outras cenas nas quais a verdade aparece, como quando uma amiga decide dizer à outra que havia certa antipatia entre elas no momento em que elas se conheceram. O que é a verdade para Pommerat e qual é a importância de ser verdadeiro nas relações atuais?

MB: Em seu teatro, Pommerat procura o verdadeiro, e não a verdade. O verdadeiro no sentido do concreto, do vivido, do autêntico. Aquele verdadeiro que nem sempre parece real. A verdade é uma noção relativa, como mostram diversas cenas do espetáculo. Uma busca por vezes polêmica e conflituosa, uma ideia que é imposta e em nome da qual causamos destruição. Podemos dizer tudo àqueles que amamos? É muito mais interessante fazer o questionamento do que respondê-lo — e é nesse lugar, ao menos me parece, que o teatro de Joël Pommerat concentra toda a sua potência.

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